3 passos para consumir ciência e praticar a Medicina Baseada em Evidências
Austin Bradford Hill é um nome que deveria vir à mente para todo aquele que busca entender, desenvolver e consumir ciência de forma confiável. Isso porque, pesquisas clínicas e resultados confiáveis tem sido cada vez mais pauta dentro da área da medicina, essencialmente em tempos de pandemia, que o COVID-19 tem forçado a ciência correr contra o tempo em busca de resultados imediatos. Sobretudo, junto com diversos ensaios clínicos que vem sendo publicados por grandes revistas, pauta-se o questionamento sobre o uso deste ou daquele remédio, baseado ou não em resultados clínicos, e o quanto a ciência pode ou deve interferir em ações políticas. Mas afinal, onde entra o nome Austin Hill? Na importância de sabermos desenvolver opiniões e consumir ciência pautado em critérios e no quanto a forma que a população consome ciência interfere diretamente sobre a saúde pública. Assim, já que a necessidade de consumir ciência de forma correta tem sido uma medida urgente tanto quanto a descoberta da cura para o vírus SARS-COV2, vou construir um passo-a-passo, para deixar claro e simples a compreensão da medicina baseada em evidências.
1º Passo: por onde começa uma pesquisa
Dentro da medicina, o foco de estudos científicos de forma geral é baseada na caracterização fisiopatológica de uma doença, seus efeitos na saúde humana e a busca pela sua cura. Então, foi no século XIX que Austin Hill, um epidemiologista e estatístico inglês, desenvolveu critérios para o desenvolvimento de estudos clínicos. Os seus critérios envolvem diretamente a associação de causa e efeito, e incluem força da associação, consistência, especificidade, temporalidade, gradiente biológico, plausibilidade biológica, coerência, evidências experimentais e analogia. Isso tudo só para deixar claro que não basta apenas uma suposição para uma conclusão direta, mas que estudos com ensaios clínicos precisam de consistência e aplicabilidade.
A partir então de um objetivo determinado e um protocolo desenvolvido, uma pesquisa científica exige uma metodologia estruturada e com uma revisão de literatura de qualidade. Uma ampla e criteriosa revisão de literatura agrega rigor científico à pauta da pesquisa, aumentando seu nível de evidência e grau de confiabilidade. Além disso, há requisitos que tornam uma pesquisa ainda mais concreta e que podem se resumir no acrônimo “FINER”: factível, interessante, nova (inovadora), ética e relevante¹. Nestes requisitos, o factível é o que primeiramente interfere na realização da pesquisa e em seus resultados, ao passo que dentro deste critério inclui um planejamento, conhecimento técnico da causa, experiência e tempo. Fatores complicadores para o contexto atual das pesquisas clínicas sobre o Coronavírus, que então exigem outros parâmetro de confiabilidade, como o próprio tipo de estudo e o método utilizado.
2º Passo: entendendo tipos e métodos de pesquisa clínica
Quando se define o tema e o objetivo de uma pesquisa, é concomitante a estruturação do tipo e método do estudo, os quais influenciam diretamente no nível de evidência e resultados pretendidos. O método que o estudo seguirá é o que define o meio pelo qual será feito o estudo para atingir seus objetivo. Assim, pode-se definir o tipo a partir de uma classificação, que envolve finalidade, natureza, abordagem, etc. A partir disto, a pesquisa será descrita como observacional ou experimental, ou se sua abordagem é qualitativa ou quantitativa, ou ainda baseada no tempo de desenvolvimento do estudo, podendo ser então um estudo transversal, longitudinal, prospectivo ou retrospectivo.
Na medicina, a seleção do método da pesquisa é um critério muito importante, ao passo que envolve a saúde humana, direta ou indiretamente. Isso porque, a escolha de se desenvolver um estudo intervencional, por exemplo, expõe o ser humano à mediações diretas do estudo, seja com uso de experimentos, testes de exames ou uso de fármacos. Quanto mais intervencional e prolongado, mais complexo e embasado deve ser o estudo, porém trazendo também maior consistência e aplicabilidade prática.
O tipo de estudo já é algo que define muito mais o nível de confiança que os seus resultados trarão e sua aplicabilidade prática na medicina. É a partir do tipo de estudo que você é capaz de inferir o grau de evidência e o nível de recomendação. O primeiro determina a relevância do estudo e sua aplicabilidade e o segunda demonstra a metodologia utilizada. A partir disso, existe uma hierarquia dentro da metodologia científica que imputa no uso prático de determinado estudo para sua prática clínica. A classificação deixa mais claro o porquê desta hierarquia, entenda:
- Revisão sistemática: é o tipo de estudo que se propõe revisar de ordenada e metodizada buscando a resposta para uma pergunta objetiva e imparcial. Faz-se uso de fontes com dados na literatura e podem ser feitas com ou sem meta-análise. Assim, a revisão sistemática possui o mais alto grau de evidência, ao passo que é um acúmulo de diversos estudos para uma avaliação criteriosa se algum dado ou resultado é comum e factível ou não. A meta-análise agrega valor ao estudo, ao passo que inclui a síntese estatística dos resultados.²
- Ensaios clínicos randomizados: Designa basicamente um tipo de estudo experimental feito em seres humanos e objetivo avaliar o resultado de determinadas intervenções médicas. O termo “randomizado” o diferencia de outros estudos clínicos, ao passo que faz uso de intervenções com um espaço amostral selecionado aleatoriamente, evitando assim fatores de confusão sobre causa-efeito.³ Diferente da Revisão de Literatura, o ensaio clínico randomizado é um estudo primário e que desenvolve alto grau de evidências a partir da obtenção de resultados práticos e sistematizados. Eleva-se ainda mais o seu nível de recomendação quando o estudo é duplo-cego, ou seja, quando nem o objeto de estudo (paciente) nem o examinador sabem exatamente qual é a variável sendo aplicada no determinado momento. São nesses casos também que se incluem populações para caso-controle com uso ou não de placebo.
- Estudos de coorte: É um tipo de estudo abaixo dos dois anteriores pelo fato do pesquisador limitar-se a analisar uma determinada população e identificar fatores de risco ou características comuns em relação a alguma enfermidade específica ou não. Também conhecido como estudo prospectivo, este tipo de estudo possui um método longitudinal, sem intervenção direta do pesquisador.
- Estudo de caso-controle: É o tipo de estudo que usa a metodologia a partir de modelo retrospectivo, no qual o pesquisador avaliar a relação entre pacientes que possuem ou não doenças em comum. Este estudo faz uso de dois grupo, no qual um envolve o caso estudado, e o outro é utilizado como controle para posterior comparação. Pelo fato de não possui intervenção ou observação prospectiva, possui um reduzido nível de evidência.
- Relato ou série de casos: Este tipo de estudo envolve simplesmente a observação e o relato de um ou mais casos que possam agregar algum valor de conhecimento para o cenário médico. Por ser bastante específico e restrito, acaba não possuindo alto nível de evidência, mas possui seu grau de importância, ao passo que pode ser pioneiro na descoberta de diagnósticos ou tratamentos novos.4 Quando se identifica algum paciente com quadro clínico peculiar, raro, este merece ser descrito e agregado a literatura médica, abrindo portas para mais pesquisas em cima do determinado tema.
- Artigo de opinião: Apresenta-se na base da pirâmide hierárquica de evidências científicas, por se apresentar como um texto dissertativo-argumentativo que se baseia simplesmente na opinião do autor. Possui valor essencialmente quando é escrito por renomados cientistas ou médicos especialistas da área, porém possui muito baixo nível de evidência ou grau de recomendação, não podendo ser único tipo de estudo a ser utilizado como base para formar opinião ou desenvolver condutas clínicas.
3º Passo: Fontes adequadas e confiáveis
Entender como funcionam as pesquisas e ensaios clínicos não é suficiente para o consumo apropriado de ciência, pois tão importante quanto ler, é saber a fonte pelo qual se está obtendo conhecimento. Isso é cada vez mais evidente com o aumento de fake news, especialmente nesta época de pandemia, mas isso já foi falado aqui no blog. Assim, para quem estuda ou trabalha na área da saúde, é essencial que se conheça fontes confiáveis que publicam estudos com alto nível de evidência. Para isso, vou listar abaixo as principais e mais tradicionais revistas científicas focadas em medicina da atualidade:
The Lancet – É uma revista criada em 1823 e com um alto fator de impacto, com publicações semanais, publicada pela Elsevier no Reino Unido.
The New England Journal of Medicine – Fundada em 1812 por Dr. John Collins Waren, possui alto nível de impacto e também emite publicações semanais, pela pela Massachusetts Medical Society.
Journal of the American Medical Association (Jama) – Com maior número de publicações anumais, tem um alto fator de impacto e é uma das mais clássicas revistas médicas.
Nature Medicine – É uma revista mais recente, fundada em 1995 que publica mensalmente, mas com pesquisas interdisciplinares, abrangendo diversas áreas da saúde.
Science – Outra revista que aborda inovação médica tão prestigiada quanto a citada anteriormente, fundada em 1880.
Revista Brasileira de Educação Médica – É uma revista com quase 40 anos de história com publicações pela Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM). Pode-se buscar seus periódicos a partir da Scielo (Scientific Eletronic Library Online).
Além das revistas supracitadas, são fontes adequadas de pesquisa científica os sites que trabalham como uma biblioteca eletrônica, na qual possuem como propósito a publicação de artigos de qualquer parte do mundo, em diversas linguagens e diferentes autores, no qual incluem o próprio Scielo já citado, PubMed, Portal Capes, ou até mesmo o Google Acadêmico, se utilizado com descritores adequados. São com estas ferramentas em mãos somadas à critérios de tema, época e tipo de estudo que um acadêmico de medicina ou médico deve se munir para praticar então a medicina baseada em evidência. E é com o contexto atual de coronavírus, fakenews e corrida contra o tempo que a ciência sofre para se sobrepor à crenças e desespero popular, provando que precisamos cada vez mais de informações concretas para a prática também concreta da medicina, baseada cada vez mais em evidências e coerência.
Referências:
- Fontelles MJ, Simões MG, Farias SH, Fontelles RGS. Metodologia da Pesquisa Científica: diretrizes para a elaboração de um protocolo de pesquisa. Núcleo de Bioestatística Aplicado à Pesquisa da Universidade da Amazônia – Unama. Amazonas, 2009.
- Sampaio RF, Mancini MC. Estudo de Revisão Sistemática: um guia para síntese criteriosa da evidência científica. Rev. bras.fisioter., São Carlos, v. 11, n. 1, p. 83-89, jan./fev. 2007.
- Souza RF. O que é um estudo clínico randomizado? Medicina (Ribeirão Preto) 42 (1): 3-8. Publicado em http://www.fmrp.usp.br/revista, 2009.
- Yoshida WB, Redação do relato de caso. J Vasc Bras 2007; Vol 6, mºnº 2:112-113.